sábado, 6 de março de 2010

da rua

O fim da festa me deixou órfão da rua. Mas não de qualquer rua. Sou um órfão da rua do carnaval.

Aquela rua que se fantasia com a sua essência mais pura só para nos lembrar a razão da sua existência.

Com a palavra, o maior poeta da rua de todos os tempos e de todas as ruas, João do Rio:

 

“Hoje é mais amargo o riso, mais dolorosa a ironia, Os séculos passam, deslizam, levando as coisas fúteis e os acontecimentos notáveis. Só persiste e fica, legado das gerações cada vez maior, o amor da rua.

(…)

 

A rua nasce, como o homem, do soluço, do espasmo. Há suor humano na argamassa do seu calçamento. Cada casa que se ergue é feita do esforço exaustivo de muitos seres, e haveis de ter visto pedreiros e canteiros, ao erguer as pedras para as frontarias, cantarem, cobertos de suor, uma melopéia tão triste que pelo ar parece um arquejante soluço. A rua sente nos nervos essa miséria da criação, e por isso é a mais igualitária, a mais socialista, a mais niveladora das obras humanas. A rua criou todas as blagues todos os lugares-comuns.

(…)

 

Para compreender a psicologia da rua não basta gozar-lhe as delícias como se goza o calor do sol e o lirismo do luar. É preciso ter espírito vagabundo, cheio de curiosidades malsãs e os nervos com um perpétuo desejo incompreensível, é preciso ser aquele que chamamos flâneur e praticar o mais interessante dos esportes – a arte de flanar. É fatigante o exercício?

 

Que significa flanar? Flanar é ser vagabundo e refletir, é ser basbaque e comentar, ter o vírus da observação ligado ao da vadiagem.

(…)

 

É vagabundagem? Talvez. Flanar é a distinção de perambular com inteligência. Nada como o inútil para ser artístico.

 

(…)

 

O flâneur é ingênuo quase sempre.

(…)

 

O balão que sobe ao meio-dia no Castelo, sobe para seu prazer; as bandas de música tocam nas praças para alegrá-lo; se num beco perdido há uma serenata com violões chorosos, a serenata e os violões estão ali para diverti-lo. E de tanto ver que os outros quase não podem entrever, o flâneur reflete. As observações foram guardadas na placa sensível do cérebro; as frases, os ditos, as cenas vibram-lhe no cortical. Quando o flâneur deduz, ei-lo a concluir uma lei magnífica por ser para seu uso exclusivo, ei-lo a psicologar, ei-lo a pintar os pensamentos, a fisionomia, a alma das ruas. E é então que haveis de pasmar da futilidade do mundo e da inconcebível futilidade dos pedestres da poesia de observação...

Eu fui um pouco esse tipo complexo, e, talvez por isso, cada rua é para mim um ser vivo e imóvel.

(…)

 

Qual de vós já passou a noite em claro ouvindo o segredo de cada rua? Qual de vós já sentiu o mistério, o sono, o vício, as idéias de cada bairro?

(…)

A alma da rua só é inteiramente sensível a horas tardias.

(…)

 

Talvez que extinto o mundo, apagados todos os astros, feito o universo treva, talvez ela ainda exista, e os seus soluços sinistramente ecoem na total ruína, rua das lágrimas, rua do desespero – interminável rua da Amargura.”

 

João do Rio em “A alma encantadora das ruas”, 1908. 

Texto completo em:

http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bn000039.pdf

 

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